O problema é todo mundoLuana estava sentada ao sofá de casa, aquele sofá quente de couro, em um dia
O problema é todo mundoLuana estava sentada ao sofá de casa, aquele sofá quente de couro, em um dia fulgurante de verão, o ventilador ligado a menos de um braço de distância, no máximo. Ainda trajava o pijama com o qual tinha acordado, por volta do meio-dia, e lia alguma besteira no Twitter. O mormaço pairava no ar como se aquele domingo fosse ser como qualquer outro, sem grandes consequências nem muitas perturbações.Ela ouviu o portão barulhento de casa abrir, e um monte de sapatos entrarem pisando pelo corredor coberto de cimento frio, crespo, que tiritava embaixo do sol e das solas duras que caminhavam nele. Olhou pela porta da sala para avistar o corredor, e viu que sua mãe vinha na frente – ela entrou, sentou no braço do sofá ao lado de Luana, passou o braço pelos ombros da filha e pegou sua mão. Luana viu que ela chorava.- O que foi, mãe?- Somos só nós duas agora, filha.O que aquilo significava não caiu na consciência de Luana por muito tempo.A mãe a abraçou forte.Os tios e tias entraram na sala, de cabeça baixa, uma das tias indo em direção ao telefone e todos lançando olhares rápidos para as duas no canto do sofá quente e já molhado de suor.A tia disse “alô, filha?” ao telefone, a voz quebrando um pouco ao continuar.Um dos tios também chorava, do jeitão quieto que era bem particular seu.- Filha? Luana?O chamado da mãe finalmente fez Luana cair em si. A consciência de que “somos só nós duas agora” significava que um membro daquela família não iria mais estar com elas afundou como uma bigorna descendo pela garganta, e uma náusea forte imediatamente subiu de volta para a cabeça, fazendo com que curvasse o pescoço e sentisse o chão sair debaixo de seus pés, substituído por um imenso abismo que lhe dava vertigem mesmo se ela fechasse os olhos com força para impedir as lágrimas de saírem.Ela se manteve firme, mas aquele abismo não foi embora. Ele nunca mais iria.Ficou ali no abraço da mãe, de cabeça baixa e olhos fechados, por nem sabia quanto tempo. Alguns anos mais tarde, pensaria como é profunda a forma como o próprio tempo ganha outro significado uma vez que você passa por algo como aquilo. Os minutos que se arrastam por uma tristeza que parece infinita ao mesmo tempo correm numa absurda realização de que o mundo continuou a girar mesmo assim.O mesmo acontece com os dias, com os abraços apertados dos amigos e os mais frouxos dos familiares e das pessoas que você nunca viu na vida, essas que veem tanta importância em expressar “seus sentimentos”, puramente inconsequentes para o que sofre do luto, que não enxergam o tempo precioso que estão lhe roubando para o longo (interminável, é verdade) processo de reconciliação de si com o mundo.De certa forma, Luana nunca perdoou. Nunca perdoou o egoísmo e o espetáculo grotesco daquele ritual fúnebre no cemitério. Nunca perdoou a necessidade de jogar fora, guardar “como lembrança” (como se ela precisasse de uma) ou doar “para alguma entidade” os pertences do pai tão pouco tempo depois de ele mesmo ter tocado e usado cada um deles. Nunca perdoou o abismo, que parece nunca tê-la perdoado também, deixando-a equilibrada em uma corda bamba sobre uma queda de não-sei-quantos mil metros a ser sentida no próximo capricho do destino. Nunca perdoou o tempo, o Sol, os planetas, por continuarem em uma órbita indiferente. Nunca perdoou a si mesma por não ter perdoado nada disso.Aos 18 anos, no entanto, com um memento mori marcado na memória muito mais permanentemente do que jamais poderia ser marcado na pele, Luana aprendeu. Cresceu. Com o coração pesado, quebrado, pela metade, deixou que o tempo a levasse adiante, porque aprendeu que lutar contra ele não é só inútil, mas também vaidoso, e acima de tudo patético. Assim, no final da adolescência, ela soube o segredo que nenhum adulto nunca quis conta-la, e ela ouvia-o na voz do pai:- O problema não é só você, Luana. O problema é todo mundo. -- source link
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