Queria ter mãos ausentes por alguns instantes. Um dia ou dois, no máximo. Não m
Queria ter mãos ausentes por alguns instantes. Um dia ou dois, no máximo. Não mais do que isso. Não quero perder para sempre o meu ponto de contato com o mundo nem a minha possibilidade de criar diálogos com o outro, mas gostaria de poder desencaixá-las vez ou outra. E deixá-las em stand-by na superfície de um móvel esquecido em algum canto. E achá-las — perdidas — no fundo de alguma gaveta quando o desejo de me expressar estiver restabelecido. Seria uma forma de aliviar os pensamentos. Uma maneira de parar de pensar, literalmente. Trago toda essa angústia nos meus traços.Agora me vem a lembrança de brincar com lego. Imagino meu corpo feito de encaixe e desencaixe. Eu me monto. Eu me desmonto. Eu me ergo. Eu me desmorono. Sou leigo sobre o que sou ou posso me tornar. E se eu enfiasse o braço esquerdo na mão direita… Será que eu escreveria breves palíndromosaté o poetareviveresseoco?E se eu pusesse a mão esquerda no braço direito… Será que eu desenharia um firmamento torto? Tudo anda tão de cabeça para baixo há algum tempo. Talvez por isso eu me sinta tonto por ainda acreditar que é possível endireitá-lo.São horríveis, mas são minhas. Se elas tivessem outro corpo, outro dono, talvez fossem mais bonitas. Mas são minhas. Ninguém além de mim pode dialogar com elas. Não posso emprestar minhas mãos ao meu vizinho para chamar o elevador, por exemplo. Seria heresia enviar minhas mãos para o papa e abençoar a humanidade — sozinho — da praça São Pedro. Minhas mãos não poderiam substituir os dedos de Nina Simone. Minhas mãos nunca tocariam piano. Pianistas têm mãos bonitas; poetas, não…Don’t let me be misunderstood.———-Texto: Mãos Silenciadas; parte 6/7, de PEDRO GABRIEL. -- source link
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